Série Descontrole
Duração 2’30”
Edição Aline Chagas
Vídeo-arte criado ao exclamar
BASTAAAA após explosão de indignação diante de uma notícia revoltante. Foi a
gota d’água! O pote transbordou!
Homenagem aos artistas Chico
Buarque e Gilberto Gil.
Texto do Curador ALEXANDRE SÁ para a Instalação BONANÇA
Bonança (da série A joia da coroa)
Ivani Pedrosa
Por Alexandre Sá
“Volta então a
questão. O que é um estrangeiro? O que seria uma estrangeira? Não é apenas
aquele ou aquela no estrangeiro, no exterior da sociedade, da família, da
cidade. Não é o outro, o outro inteiro relegado a um fora absoluto e selvagem,
bárbaro, pré-cultural ou pré-jurídico, fora e aquém da família, da comunidade,
da cidade, da nação ou do Estado. A relação com o estrangeiro é regulada pelo
direito, pelo devir-direito da justiça.”
Jacques Derrida
Por
um ato falho dos meus dedos, escrevi Bonanza ao invés de Bonança no começo
desta página. Em alguns segundos, pisquei os olhos e pude perceber o tropeço,
não necessariamente tão ingênuo assim. Mesmo sem ter assistido, inscrevi como
título da exposição de Ivani Pedrosa, o mesmo nome de um seriado americano de
muito sucesso. Um faroeste. À despeito da narrativa, me pareceu curioso como
ainda há algo em nosso território que é da ordem da posse, do latifúndio, da
terra, do agronegócio e dos estrangeirismos. Mas talvez, nada disso interesse a
Ivani Pedrosa. Talvez. Puro talvez. Como
acontece nos melhores casos, o trabalho, já estrangeiro, trai a artista e
aponta para uma profusão de questões que inicialmente pareciam distantes.
Bonança,
instalação feita especificamente para a Casa França-Brasil, faz parte da série
A joia da coroa, que Ivani Pedrosa realiza durante a pandemia como forma de
curar-se do quantitativo cavalar de imagens, notícias, tragédias e horrores
cotidianos que nos assolaram (e ainda assolam). Para isso, a artista opta pelo
branco e por variações pictóricas mínimas, como se fizesse um manifesto íntimo
a favor da paz e de novos recomeços. O jogo duplo que o trabalho inventa é que,
como a artista utiliza como referenciais simbólicos o mapa e a bandeira do
Brasil, eles terminam, com o branco, perdendo aquilo que talvez estruture seu
clichê: a cor. E intensificam, por outro lado, o apagamento inevitável da
multitude, como se também guardassem consigo, a palidez histórica. Nesse
sentido, o título da série, A joia da coroa, também surge como desaparecimento,
indicando que a coroa, num outro jogo entre vilipendiada e vilipendiadora,
talvez seja apenas algo de memória que se colocaria como resto para a
reafirmação impossível do dispositivo de poder. Trata-se então da construção de
uma atmosfera lírica de materialidade épica de um Brasil já cansado e
consideravelmente em ruínas, mas que exatamente por isto, considerando seu
processo violento e intermitente de recomeço, merece estar pronto, em breve,
para outras histórias.
TEXTO GERAL DA EXPOSIÇÃO POR ALEXANDRE SÁ
A alegria não é a prova dos nove( ou um arquipélago de singularidades )
... também é deste modo que o destino costuma comportar-se conosco, já está mesmo atrás de nós, já estendeu a mão para tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar, Acabou-se, não há mais que ver, é tudo igual - José Saramago
Ê bumba-iê-iê boi
Ano que vem, mês que foi
Ê bumba-iê-iê-iê
É a mesma dança, meu boi
Gilberto Gil e Torquato Neto
A alegria não é a prova dos nove é um projeto de ocupação da Casa França-Brasil com curadoria de Alexandre Sá, que não se inscreve como exposição coletiva, no sentido de uma construção ampliada com trabalhos diversos de modo a potencializar questões em comum. Trata-se, de revés, como explícito no subtítulo, de um arquipélago de pontos singulares, excêntricos, capazes de provocar, como indica o dicionário, a construção de um espaço-tempo onde as leis da física entram em colapso. Ou mais concretamente, de um conjunto de exposições individuais de artistas com poéticas díspares que atravessarão o barco do desejo de pensarem seus próprios trabalhos em relação à arquitetura da Casa França-Brasil a partir de um mote determinado: a frase já conhecida de Oswald de Andrade do Manifesto Antropófago, na qual a alegria surge como um sentimento capaz de provar operações elementares ou como prova inquestionável da relação, não necessariamente aditiva, entre eixos. Aqui para nós, a alegria não é passível de tal operação. Talvez ela nem mesmo possa caber em tamanha responsabilidade lógica.
Os tais 100 anos da Semana de Arte Moderna surgem apenas como névoa para que possamos pensar o Brasil, não necessariamente primitivo, mas profundo como um tropeço, como uma epifania, a partir de questões individuais que se colocarão nesse prédio e em sua (nossa) história. O desejo indiciário não é pensar o país estrito e dicotômico dentro de uma talvez já obsoleta cidade partida, mas discorrer em algum silêncio sobre aquele algo do país que ainda murmura, apesar de. Sem desconsiderar tantas histórias e narrativas que por aqui passaram, bem como seus bons fantasmas que talvez conosco, problematizem a velha tensão entre nós e os interesses internacionais.
Exatamente por isso, as ilhas desconhecidas do nosso arquipélago promoverão outras nuvens, sem nenhuma assertividade de precipitação, para que o público, de acordo com sua deambulação física e emocional, vá construindo suas teias de afeto, luto e regeneração.
Exatamente por isso, uma das possíveis chaves que abrirão as portas quânticas que carregamos no peito, é um diálogo com a música Geleia Geral (em seu título emprestado de Décio Pignatari) de Torquato Neto e Gilberto Gil. Este último, buda nagô, precioso aniversariante em 2022 com seus 80 anos, assim como Caetano Veloso, Milton Nascimento e Paulinho da Viola, nos lembra que “A alegria é a prova dos nove. E a tristeza é teu porto seguro.”
Para nós, aqui, ainda dentro do navio naufragado, talvez seja possível apostar em xeque mate soçobrando que, se a alegria não é a prova dos nove, a tristeza também não é mais o nosso porto seguro. A questão que evola-se é reconstruir alguma maturidade outra para que desconfiemos um pouco dos portos, das âncoras, dos reis, das nossas certezas e de nós mesmxs. Para que pensemos uma rota outra de navegação coletiva, conscientemente frágil da fragilidade que implica em sabermos que antropofagia é o norte fundamental para toda e qualquer relação que sobrevive em nós e que não merecer ser obrigatoriamente violenta. Marulho.
Alexandre Sá